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Sobre a Visualidade de Mundos Paradoxais

Marcelo Campos

Escrito para a exposição Espiral Contínua, galeria Roberto Alban, Salvador, 2016

Pedro David, na atual exposição Espiral Contínua, nos oferece a metáfora da espiral. Didi-Huberman, ao tratar do trabalho de Guiseppe Penone, nos esclarece que a espiral, o “caracol” se realiza quando o “espaço de nossa visibilidade familiar se distorce” e se transforma num lugar estranho, paradoxal. Com as séries “Rota Raiz”, “Madeira de Lei”, “Terra Vermelha” e “Coisas caem do Céu”, o artista acredita realizar esta mesma sensação da espiral, atuando de dentro para fora e vice-versa.

 

Portanto, nas fotografias, nos deparamos com os efeitos da espiral, a distorção, o interno das aparências, a visualidade de mundos desconhecidos, mesmo quando olhamos para paisagens cotidianas: a terra, uma plantação, as paredes de um apartamento, o chão.

A textura e a luz ganham destaque na observação do fotografo. Pedro atenta para a luminosidade incomum da fachada de uma casa em contraste com o luar. Em outra ocasião, o carcomido de uma imagem sacra ou de um mapa antigo dão sentido ao tempo pretérito e à obsolescência das impressões e tingimentos. O contraste entre grandes coberturas de plástico, às vezes metálicos, e a paisagem gera sensações quase épicas, monumentais, diante de situações mais do que mundanas. Por dentro das salas de espera, nos corredores de hotéis baratos, a cor e a textura ganham e oferecem sentidos ao trabalho dos dias, aos hábitos humanos que na resolução de necessidades imediatas geram soluções estéticas.

Estas relações entre o interior e o exterior se evidenciam quando o artista se coloca diante da natureza, das madeiras de lei, que parecem intrusas na regularidade das plantações de eucalipto. Mas, no avesso das aparências, são árvores solitárias, sobreviventes nativas, lutando por permanência na intromissão do campo de eucaliptos que muda o ecossistema. Pedro, então, reflete sobre o sertão e seus potenciais invasores, registrando o epílogo destas paisagens.

A paisagem, na fotografia de Pedro David, lida com as ameaças do fora. As estradas abertas e a exploração trazem as primeiras contradições. As picadas do caminho, as rotas, são, concomitantemente, a possibilidade de acesso - como a câmera fotográfica é para o olho do fotógrafo - mas o início da especulação que, se desenfreada, gera o aniquilamento. Imagem e destruição, aqui, potencializam a arte de David com beleza e denúncia. “Rota Raiz” nos lança o confronto com o lugar de afeto do artista, o interior de Minas Gerais, as reminiscências vividas e imaginadas a partir das visitas próprias e da narrativa paterna.

O lado de dentro, nas imagens do fotógrafo, se elabora como em Ingmar  Bergman, onde, no lar trancado, convivem a dor, a ansiedade, a melancolia e uma réstia de luz para a felicidade, o vir-a-ser dos dias. Imaginar o que traz o pai, observar o interesse da mãe. Pedro David vivencia o personagem do fotógrafo menino aguçado pelo olhar esquivo diante dos impresumíveis.

A inteireza do pai que vai longe, o medo do não retorno, a inacessibilidade do homem que cisma e pode ficar embarcado, satisfeito com o imenso da natureza. A fotografia de David tenta a captura destes instantes imensos, solitários e rijos. O rio. O pai, a natureza, o real, aquilo que jamais se alcança, como bem sabia Guimarães Rosa. E, ao mesmo tempo, quando da volta, traz as experiências do profundo, o interior, onde nada da civilização pode mais assustar, pois, nos olhos, ele teve acesso ao imprevisível do céu, o encarnado da terra. E Pedro, ainda assim, me diz: “meu pai (...) passava logos períodos em trabalho no Norte de Minas, e voltava cheio de histórias e presentes.”

Portanto, aqui, tratamos das viagens de Pedro, de dentro e do fora, o aberto. Os sonhos são referenciados, experiência narcisista, para Freud, mas, de outro modo, percebe-se o luto como reação à perda. Menos paralisante do que criadora, a experiência do luto, aliada a uma das sensações da melancolia, gera a consciência de que “o objeto amado não existe mais, passando a exigir que toda a libido seja retirada de suas ligações com aquele objeto”. Portanto, em séries como “Terra Vermelha”, Pedro David mantém-se desejoso, “libidinal”, nas palavras de Freud, já que, diante da perda, a fotografia substitui as terras perdidas, exploradas em terraplanagens, por uma alucinação: olhar bem de perto o que restou. As terras, agora, ganham sentido mais arqueológico, como se fosse possível perscrutar riquezas. Não necessariamente a opulência do valor capitalista, mas os valores das sobras, do que se configura com pouco interesse.

 

O luto também está presente nos inservíveis dos produtos excedentes, como estranhamos em “Coisas Caem do Céu”. A partir da observação do que caía em sua área de serviço, o fotógrafo clicava os descartes anônimos, que caem do céu. Frutos ressecados, extensões últimas das árvores dos hábitos cotidianos, restos de material plástico, meias de seda, falsos invólucros de proveitos que pretendem reter o momento, ampliar a duração do desejo, conservar a vida do que foi processado industrialmente. E depois, na extensão do tempo, a vontade de descartar, depois de saciado o desejo. Mas acontece que algumas das tais embalagens não se decompõem, nem assumem uma natural posição na espiral contínua da vida, tornando-se lixo duradouro.

Na sensação de entrar em espirais e encontrar pela primeira vez o que já se tinha imaginado, Pedro David revela a presença inédita de uma paisagem da memória, escava, traz à luz, olha a luz com uma “inquietante estranheza”.

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