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Expedição para Dentro

Daniela Name

Fragmento

Escrito para a exposição

Extração Inframundo

 Galeria da Gávea, Rio de Janeiro, 2018

Baixar versão integral (PDF)

Por isso sou triste, orgulhoso de ferro

Noventa por cento de ferro nas calçadas

Oitenta por centro de ferro nas almas

E esse alheamento do que na vida

É porosidade e comunicação.

 

Carlos Drummond de Andrade, Confidências do itabirano.

 

E como sempre há uma coisa roubada, além de um buraco que fica à mercê dessa ausência. Não há obturação possível para o canal aberto pelo obturador, rasgo latente e dolorido nas coisas do mundo: uma fotografia é sempre a cicatriz a nos contar as metamorfoses de vida e de morte que ela acumulou antes de se transformar em imagem.  É a isso que nos leva, no fim das contas, esse conjunto de trabalhos reunidos por Pedro David em Extração inframundo. Ao se debruçar sobre os duelos entre homem e natureza na construção de novas paisagens, o artista também revela um pouco das estranhas do próprio ato fotográfico.

A sensação de batalha está muito presente na série Madeira de lei, em que Pedro registra as relações entre o eucalipto, predadora “madeira de reflorestamento”, e outras árvores. O sufocamento provocado pelas imagens é ampliado por um recurso de composição usado com muita habilidade pelo artista: apesar de haver nos planos com troncos de eucalipto uma sugestão de ritmo e de profundidade, Pedro veda o ponto de fuga com a árvore prisioneira. Se parece não haver escape para nós, não pode haver saída para o olhar que observa essas imagens.

Terra vermelhanos apresenta outro tipo de subtração e de paisagem reinventada, mas se mantém atravessada pelas relações entre homem e natureza. Pedro registrou as imagens para a série nas caminhadas pela sua vizinhança em Belo Horizonte, onde há uma mina de ferro (...) Com essas imagens, o artista nos joga novamente em uma vala real e imaginada – o vazio deixado pela mineração, que desloca nacos do solo, pode ser a alavanca para lampejos e reflexões. Se a terra de ferro pode ser pintura, a memória pode viajar até os vermelhos e amarelos de Mestre Ataíde, que saíram do chão para o céu nas igrejas de Mariana (...)

O ferro: como Drummond e Ataíde, ele é uma pedra no caminho dos mineirismosque povoam de imagens e sentidos o repertório dos brasileiros. (...) Os óxidos que dão a base aos pigmentos nada mais são do que ferrugem, ruína que se desprende do corpo duro do minério como pedaços de pele. O ferro traz em si a sua ruína – noção importantíssima para entender essa exposição.

Ossos, primeira experiência de Pedro com a escultura, torna isso muito evidente. As peças nasceram de um processo de coleta: ele apanhou galhos de espécies do cerrado que já estavam caídos pelo chão (...) Mas não exibe os próprios galhos; fez deles o molde para reproduções em bronze. As esculturas que também são, de alguma forma, um duplo fotográfico, fantasmas de algo que foram e que poderiam ser. 

A ideia de coleção nos leva a 360 metros quadrados, série em preto-e-branco desenvolvida desde 2012 e na qual Pedro cria uma espécie de códice do universo ao seu redor, rearranjando os objetos e o espaço em sua casa (...) A exemplo do que acontece nas redes sociais, Pedro se dispôs a fotografar aquilo que o cerca: imagens teoricamente cotidianas. (...) 

Em vez de instantâneos, Pedro guarda instantes: a imagem que poderia ser deslizante, trivial, e se acumular com outras tantas semelhantes, se transforma também em fóssil, como ocorre com as esculturas de Ossos.(...) Pedro nos leva a pensar sobre a fotografia como uma extração das coisas que importam, naco de ferro que se distingue e se desprende da terra como aquilo que queremos guardar. Toda ausência é aquilo que dói nos lados de dentro. As fraturas inframundos têm calcificação infinita, são buraco que nunca fecha.

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