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A imaginação ampliada

Homens, pedras e memórias

Geórgia Quintas

Escrito para o catálogo da exposição Homem Pedra - Galeria Cemig - Belo Horizonte - 2011

Há experiências visuais que nos fazem tomar um rumo errante, divagar sobre a materialidade do que vemos e sentimos. É um fio de memória, bem próximo do que acumulamos ao longo de vivências, nas quais o espírito acompanhou nosso olhar em momentos especiais. Viajamos com recorrência neste processo de percepção, latência e remição. Diante da obra realizada, a fruição poética nos enlaça em diversos graus de encanto e inquietação. Nessa experiência, algumas imagens provocam certa apreensão silenciosa, revestida da aridez do território apresentado. Ou será dos espaços afetivos provocados?

No ensaio Homem Pedra de Pedro David, apesar da certeza de suas paisagens capturadas no sertão nordestino, a estabilidade possível da temática se desdobra em campo movediço, sorrateiramente imprevisível. O imaginário que a priori conduz para a retórica entre homem e natureza se confronta, no entanto, com escolhas estéticas que reduzem a possibilidade de percebermos a objetividade do documento temporal que cerca os símbolos dos “sertões”.

Os signos visuais arregimentados em Homem Pedra se revelam como pistas, rastros, passagens e fragmentos. Apreender a metáfora subjacente à narrativa não linear da pesquisa de Pedro David é um ato que traz em si a intervenção de mundos particulares que acessamos de modo natural e intuitivo ao relacionarmos com imagens fotográficas. Como não se lembrar de autores como Graciliano Ramos e João Guimarães Rosa que construíram em nós referências imutáveis? Como não fugir dos arremedos de estereótipos tão comuns na alteridade sobre quem vive no sertão? Como não remeter ao fotógrafo libanês Benjamin Abrahão Botto (1890-1938) e seus retratos de Lampião? Como não achar que a poeira, a distância, a escassez de água, o sol como um punhal, a rigidez da terra evocam sentimentos e imagens? Pela percepção visual ecoam tais elementos ou outros.

A obra que se instaura em nós, indica a relação de territórios imaginários. Ao adentrarmos na poética apresentada neste trabalho, a compreensão sobre o sertão vivenciado por Pedro David – de modo distendido, conduzindo o tempo ao seu tempo –, toma outros contornos: os da imaginação. Por alguns momentos, aprendemos a ver de novo, entramos em um labirinto que sugere e recua através da fina linha que entrelaça o que vemos e o que se representa.

Neste aspecto, as pesquisas visuais de Pedro David são permeadas de posturas de busca pela linguagem como expressão do pensamento que precede o olhar fotográfico e mesmo a fotografia. A imagem enquanto código visual é parte do processo de encontrar uma ideia, a elaboração de dada temática antevista na imaginação. Seu processo de criação respira dentro de uma rede vital e orgânica na qual os artistas estão firmemente ligados. Criar é considerar filtros, mediações, referências, necessidades, desejos, sonhos, negações, memórias, pessoas, tempos, lugares, cheiros, histórias e afetos. Criar, de certo, é mais. É ter a incerteza de uma busca conceitual que precisa ganhar corpo e tornar-se imagem.

A busca e a incerteza dois eixos fundantes na prática processual da criação condiz com algo que a autora Fayga Ostrower nos indica como “ampliação do imaginar”. A prática e o envolvimento fotográficos, pelos quais Pedro David desenvolveu Homem Pedra, possibilitam essa discussão:

“(...) A imaginação criativa nasce do interesse, do entusiasmo de um indivíduo pelas possibilidades maiores de certas matérias ou realidades. Provém de sua capacidade de se relacionar com elas. Pois, antes de mais nada, as indagações constituem formas de relacionamento afetivo, formas de respeito pela essencialidade de um fenômeno” (Ostrower, 2009).

Homem Pedra traz em seu processo de pesquisa dado arcabouço de perspectivas e permanências singulares. Ao ponderar sobre o caráter de continuidade em seu trabalho, Pedro David, explica em certa medida o teor de sua busca artística através da imagética. “[Há] permanência, em cada projeto, pois os projetos nada mais são do que tentativas de justificar com palavras o que na verdade não se pode verbalizar, pois é imagem, interna”.

O afeto da memória

 

Parece que o acaso brindou Pedro David. Sua busca por compreender as várias facetas do sertão nordestino, o fez viajar. Sem muitos planos ou rotas preestabelecidas, conheceu “atmosferas” desse território que só a fotografia poderia traduzir a beleza e simplicidade encontradas. Viajar poderia mesmo ser uma alegoria para fotografar.

 

Registramos porque não voltamos, não seremos quem fomos naquele lugar e o lugar, este, será o que guardamos em nossa memória do que vivenciamos, de fenômenos que sensibilizaram o olhar. Viajar e fotografar ajudam a guardar, a confortar, a tranquilizar que voltaremos às sensações vividas.

 

Não seria demasiado considerar que ao optar pela fotografia em médio formato, Pedro David transita pela via da espera, da fabulação até os filmes serem revelados. A escolha por trabalhar com cromos nesse projeto remonta a questões simbólicas do processo criativo.

 

Conhecer os caminhos pelos quais um ensaio se constrói, passa a ser outra forma de percebermos as soluções ou estratégias que o artista atinge por posturas que dão significado e visibilidade à sua expressão mais íntima e poética.

 

Assim, conversando sobre seus pormenores de captura da imagem, revelação e retorno do olhar ao debruçar-se nos cromos, durante o processo de edição (contínua criação) e da artesania que isso envolve, me escreve Pedro David:

 

“Realmente, os cromos se referem muito mais ao processo do que ao resultado. Sabemos que as novas câmeras digitais são capazes de realizar imagens tão boas quanto os filmes. Então porque continuar a utilizar este processo caro e trabalhoso?Tem a ver com a manipulação do equipamento, do material sensível, a atitude, cuidados, de separar o momento da produção do momento da edição, e da sensação de lidar com este processo de fixação da imagem na gelatina de prata, artesania.

 

Assim como guardar esta cartela com aqueles pedaços de filmes que vieram de fora, acompanharam toda a viagem, guardados com cuidado total, e retornaram para entrarem no laboratório e trazerem estas imagens, assim como foram pré-realizadas lá, no sertão. É uma coisa meio romântica, assim como catar pedrinhas e mudas de plantas em cada lugar e trazer para casa para reavivá-las aqui.

 

Ainda tem muito a ver também com a reminiscência, pois tenho nítidas lembranças de meus pais revelando filmes na cozinha à noite, e do banheiro cheio de cópias grudadas nos azulejos pela manhã...”.

 

Por este motivo, reconhecemos em Homem Pedra uma vigorosa textura da memória. O filósofo Henri Bergson propõe que toda percepção é já memória. “Nós só percebemos, praticamente, o passado, o presente puro sendo o inapreensível avanço do passado a roer o futuro”, explica. Talvez seja o “homem pedra”, a hipótese – tão matérica quanto subjetiva – de que a natureza da emoção se equivale ao território dos signos que acumulamos. Homens, pedras e memórias foram e sempre serão imagens de todos nós. Representações sem fim.

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